terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Thiago de Mello, um poema

Os Estatutos do Homem*

(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I


Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida, e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II


Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III


Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV


Fica decretado que o homem não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V


Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo
gosto de aurora.

Artigo VII


Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII


Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX


Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X


Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI


Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII


Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:


Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII


Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final


Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964


*Mello, Thiago. Faz Escuro Mas Ainda Canto. 1985. Civilização Brasileira. 10ª edição.

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